Sobre o
patamar da escada, como se fosse o cimo de um outeiro, observava os pacíficos
bebedores, os bebedores problema, os bebedores esporádicos e meus próprios
pensamentos que pairavam sobre o salão. Continuava a descer e mais dois degraus
abaixo comecei a perceber a necessidade de definir a qual dessas espécies pertenço. Mas rapidamente torna-se nítida minha condição de igual a todos e ao
mesmo tempo diferente de todos. Igual, pois todos neste momento bebemos e não
há um pensamento limpo nesse lugar e nenhuma boca capaz de proferir algumas
palavras sem antes levar um trago até garganta. Diferente, pois posso saber da
minha condição verdadeira, a dos outros não passa de julgamento ou mera especulação
que faço com os botões de minha camisa. A condição de igual aos outros os
coloca na mesma condição da miséria humana que temo e vivo, pois dito por Cruz
e Souza que nos apodrecimentos da matéria somos todos iguais na boca dos vermes
que nos devorarão em plebeia fúria. Diga-se de passagem, que por aqui se encontram
apenas ilustres e nobres, ilustres desocupados e nobres boêmios, que ao saírem
cambaleantes ao final da noite ou despontar da alvorada, alguns chegarão a
casa, outros dormirão em bancos e outros nas calçadas e sarjetas,
diferentemente dos ordinários, que dormem cedo e acordam cedo.
A música que
não gosto e ouço, continua a tocar, mas por obra do destino os músicos são
bons, me agrada a maneira como tocam, porém o tipo de música me desagrada por
completo, daquele tipo, feita pra não se prestar a atenção e servir de pano de
fundo pra conversas de ébrios. Mas não consigo não prestar atenção em uma
música, seria mais fácil pedir a um interlocutor calar-se do que desviar minha
atenção para longe da harmonia, dos acordes, da melodia, do prazer inenarrável proveniente
dos sons. Dizem que o caminho entre a razão e o coração é longo, árduo, mas o
caminho do meu ouvido ao coração é quase inexistente, pois ambos vivem juntos.
Os sons são milagres, notas musicais são milagres, a voz que canta é um
milagre, a ciência é falsa, mentirosa, explica a tudo e todos, mas não tem
coração. Enfim ao menos os músicos são bons e a função de uma música, que é
emocionar, foi cumprida. Raiva, estou com raiva, muita raiva, e é essa a emoção
que me foi dada por hora.
Pisei no
último degrau decidido a me enquadrar numa condição de desigual, de
indiferente, pois meus comparsas etílicos se deliciam em conversas acompanhadas
de música e eu, nem me delicio com a música e nem com essa conversa sem
sentindo entre mim, eu e meu racionalismo.
Pra fora!
Fora daqui montado no cavalo de Álvaro, metendo-me as próprias esporas no lombo
do cavalo que sou. Rápido, rápido... e saio daqui com uma esperança de um dia
me reconhecer em um animal, e como Haller que se autodenominava o Lobo da
Estepe, sabendo de sua própria condição, eu encontre um com o qual me
identifique. Por vezes imaginei-me uma dessas enormes baleias que vagam anos
pelos oceanos sem encontrar semelhante, mas a minha insistência em tentar fazer
parte do contrato social da modernidade, ainda me coloca fora dos oceanos,
distante da possibilidade querer saber como é realmente ser um solitário
convicto. Por enquanto continuo apenas na minha condição de um solitário que
anda por entre a gente, bebe em bares e frequenta espetáculos musicais e que
sempre encontra alguém com quem ter e poder encontrar-se em outra hora ou outro
bar... e dane-se a dondoca cabeça oca metida a intelectual que me ficou
esperando voltar do banheiro. Vais feder como a princesa da ironia dos vermes,
tu também, falsa donzela de pensar medíocre.
Realmente,
vinho não me faz muito bem...