terça-feira, 8 de abril de 2014

Devoção

E observando aqueles homens despedirem-se após a breve visita, fiquei imaginando qual seria a relação entre eles. Um bem mais velho que o outro, e este mais velho percebia-se que era judiado, mal tratado pela vida. Apesar do respeito demonstrado a ele, o mais novo não aparentava ser do mesmo sangue. Ao mau trato da vida me refiro ao corpo, à carne, não um sofrimento emocional, já que tinha o semblante sem uma superfície triste e sem traços de peso em consciência. Tinha por certo uma expressão de que havia muito por fazer ainda.
Os infortúnios mencionados, provavelmente deveriam ser por conta de algum acidente ou doença. A ele já não pertencia mais um dos braços, uma das pernas mais era um estorvo do que perna, e a mão que lhe restou para apoiar-se na bengala de osso era medonha. Eu a vi sem a luva preta que a escondia, havia tirado-a para mostrar algo ao outro homem. Sobraram-lhe apenas dois dos artelhos: o mínimo e o opositor, os cotocos dos outros três eram nojentos, mas mesmo assim posso afirmar que ele por si só não se envergonhava disso, em seu rosto não se manifestava a vergonha.
Restou-me apenas elucubrar a respeito de quem seriam, de que maneira tornou-se naquela figura atraentemente bizarra. Via-se que era firme e dedicado, afinal, com toda sua dificuldade física liderou e labutou na construção da gruta de oração do asilo. Imagino eu que com todo ânimo e devoção deve ter sido diácono ou até mesmo um padre que acabou desordenado (não sei dizer e nem vou me informar a respeito de ’desordenar-se’ um padre) e o outro homem um pupilo de outros tempos. Sabe-se lá!  e sabe-se cá, é que eu devo me aproximar de um homem sem um braço, sem três dedos da mão do braço que restou,  que anda apoiado numa bengala e que arrasta uma perna e que conduziu uma obra de uma gruta para colocar esta santa de gesso que eu só vim para entregar.

Talvez ele seja mais vivo e feliz do que eu, que nem acredito em santa nenhuma e entrego santos de gesso, que não faço gruta, mas imagino coisas, que tenho um corpo perfeito, mas uma voz sem som algum.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Feira livre

Depois de quase tropeçar numa caixa de mexericas deixada em frente àquela barraca de frutas é que se deu por conta de onde estava. Por um momento perdeu-se completamente entre as teias de seus pensamentos, estas que cuidadosamente eram tecidas fazendo uso de apenas uma matéria prima: ressentimento. E no eterno reviver das mágoas passadas alimentava e realimentava a mesma sensação por anos a fio. Talvez se tivesse tropeçado até amaldiçoaria as estufas que produzem frutos fora de época; durante essa época do ano não tem mexerica no pé! Apesar da sensação do estômago embrulhado, que sempre aparecia revivendo tais situações, sentia-se satisfatoriamente bem e em posse de um humor que já estava morno, aquecido pelo sol que começara a aparecer logo que pisou no comecinho da feira de rua em que estava. Sempre reconheceu e admitiu que seu humor ao acordar é dos piores, tal e qual um iceberg, vê-se sua ponta no semblante, mas na realidade, a parte maior encontra-se escondida; nas palavras nunca ditas, nos diálogos evitados, nos olhares desviados e nos bom-dias nunca ditos.
Com bastante jeito perguntou ao feirante se seria incômodo afastar um pouco aquela caixa, pois alguém poderia tropeçar.
--Empurra aí! fica a vontade que eu tô atendendo a dona aqui.
Sua reação foi apenas olhar e sair andando sem dizer ou fazer nada. Por milésimos de um segundo pensou em voltar e despejar o conteúdo da caixa no chão e retirá-la do caminho, já que detesta levantar peso, assim, a caixa ficaria levinha e poderia ser tirada facilmente. Mas não fez, provavelmente haveria encrenca e seu humor já estava quase em um nível razoável. “Muito pouco pra prolongar o humor negativo até mais tarde! As cascas destas frutas valem mais do que quem as vende.”
E voltando a seu passeio matinal questionou-se por qual motivo não mudava de rua, já que naquele dia da semana a feira livre estava bem no seu caminho tradicional diário. Mas este assunto não é importante no dia de hoje, o diálogo fictício com o dono daquela banca, ou funcionário talvez, naquele instante seria mais relevante. Aliás, a feira dava um tom variado ao cinza de seu dia, inclusive introduzir pensamentos novos desagradáveis para entrarem no lugar dos velhos desagradáveis que já nem tão desagradáveis estavam... já tinha até um apego por este ou aquele outro. Seu mais querido de todos era com o da secretária do colega de gerência. Já havia uns três meses que ela, sua saia justa, seu traseiro admirável e falta de educação disfarçadamente furavam a fila da máquina de café.
--Adoro caputino! Ainda bem que o pessoal deixa livre o café, o chá com limão e o caputino.
“Que conversa fiada dessa mulher! Ninguém falou nada a respeito de propósito. A turma fica atrás só de olho nos atributos dela. Um dia eu mando ela voltar para o final da fila, afinal de contas já não sou mais officeboy ou auxiliar, o tempo passou e a fila andou, não sou mais moleque de olhar bunda de secretária em fila de máquina de café.” E como ele adorava passar e repassar, revisar cada detalhe do fato meticulosa e cuidadosamente. Algumas vezes fantasiava um pouco a respeito da cor da roupa de baixo da mulher, mas por pouco tempo, para que sua atenção não se desviasse do interesse primordial.

E agora foi uma topada com um senhor que se virou rapidamente em frente à banca de peixe sem prestar a devida atenção ao fluxo de transeuntes. O mais estranho é que no momento ainda pensava nas roupas de baixo da secretária, de um rosa meio alaranjado, parecido com a cor do filé de salmão da banca. Esses detalhes todos acabaram por produzir um efeito indesejado, o odor da banca misturou-se a sua imaginação e nunca mais olharia com a inadmitida satisfação que olhava para frente na fila de café.