Em um de meus esporádicos passeios ao nascer do sol, certa vez – e a única por assim dizer – deparei-me com uma figura de aparência completamente comum. Um homem comum vestindo roupas comuns, mas em uma atitude nada comum para estes tempos de hoje naquele parque: um cavalete virado para o lado contrário ao do lago e uma tela com umas manchas de tinta, e ao lado havia uma banquetinha com um conjunto de pincéis de tamanhos variados. Paramos a seu lado e ficamos a observá-lo, eu, minha curiosidade e minha crítica de ignorante. Numa entonação muito calma sem se virar me indagou se eu já era capaz de antever o que seria pintado naquela tela:
– Obviamente não será o lago e seus pássaros!
– Por que não? Posso querer por à prova minha memória fotográfica. E se eu quiser pintar o momento que vi antes de o sol começar a ofuscar o que eu não posso ver agora?
– Não tinha pensado nisso. Sabe que conheço uma canção que diz que “O problema com o classicista é que ele olha uma árvore, é tudo o que vê, ele pinta a árvore. O problema com o classicista é que ele olha para o céu, ele não pergunta por que, ele só pinta o céu. O problema com o impressionista é que ele olha para um tronco, não sabe quem ele é parado olhando para este o tronco...” e por aí vai.
– Uma visão um pouco simplista, me parece até opinião de algum artista contemporâneo, talvez alguém que desenhasse latas de sopa – um tom irônico em sua voz denunciava que sabia de quem eu estava falando.
– Que por sinal continuam com o mesmo desenho há uns 50 anos.
– Talvez estas coisas façam sentido para alguém, mas para mim não fazem.
E durante este curto diálogo continuou com suas pinceladas que nada pareciam. Permaneci ali parado apenas olhando, cético e indiferente a qualquer possível resultado do que quer que fosse ser revelado por aqueles gestos que guiavam cuidadosamente cada um dos pincéis que ia trocando e misturando cores em suas pontas.
– E o senhor? Pretende ficar aí parado me vendo pintar?
– Ainda não me decidi, se o senhor me permitir posso ficar, mas se preferir posso ir embora.
– Não, não me entenda mal. Apenas uma pergunta, sabe... dessas que a gente usa só pra continuar com a conversa. Porque o senhor não fica do lado detrás da tela, assim podemos conversar nos olhando, olhos nos olhos.
– Como quiser... mas... o senhor não vai me incluir em sua pintura, vai?
– Não, detesto pintar pessoas – e soltou uma gargalhada enorme.
– De que o senhor riu?
– Sabe que uma de minhas filhas me pediu que pintasse um retrato dela, que fizesse uma cópia de uma fotografia preto e branco de quando ela era bebê, mas que eu reproduzisse as cores como eram. A menina não gostou muito...
– Por qual motivo?
– Ela disse que o rosto dela havia ficado todo torto. Fato é que pra eu imaginar ou lembrar, seja lá o que for, das cores como eram tive que pintar metade como era e metade como é. Foi a maneira que encontrei de me expressar, por fim ficou um retrato de meia menina e meia mulher, por isso ela entendeu que tivesse ficado torto, mas na realidade eu não me lembrava mais de como era a cor de seu cabelo, a inocência de seu olhar foi se diluindo junto à tinta, as proporções se perdendo como se durante o tempo que eu levei pra pintar um lado do rosto fosse proporcional ao tempo que passara em sua vida até o momento que pintei o outro lado do rosto. Um pouco confuso, assim como o resultado. Ela jogou fora, o senhor acredita? – e mais outra gargalhada, com se fosse uma coisa completamente normal jogar uma pintura fora.
– Mas como assim, jogou fora?
– E com requintes de crueldade, blasfemou e rasgou a tela!
– E o senhor não se manifestou, não reclamou?
– E por que deveria? O quadro era dela.