Precisamente às dez horas e vinte e dois
minutos daquele dia, Alberto sentou-se na beirada de sua cama, sempre bem
esticada e arrumada pela manhã, e ao afastar as almofadas encapadas com um
crochê em barbante cru, retirar seus chinelos pantufas e esfregar as mãos no
rosto, ocorreu-lhe o seguinte pensamento: “Eu sei o que é entristecer,
realmente eu sei me entristecer, não sei se por hábito, necessidade ou auto
piedade, mas sou ‘profissional’ nesse ramo. Será que outras pessoas se
aborrecem tanto e com tanta freqüência como eu? Tenho clara noção de que o
problema está em mim, e, diga-se de passagem, bem arraigado. Mas minha
tendência em atribuir esse desconforto emocional está sempre direcionada ao
outro. Aquele que frustra minhas expectativas sobre os acontecimentos, aquele
que com suas idéias consegue ruir minhas convicções, todas construídas com
muito sacrifício de tempo em leituras diárias sobre assuntos de meu interesse,
e aquele, aquele, principalmente aquele mais jovem e estúpido que não viveu
direito as amarguras da vida, a perda de uma esposa, a vida sem descendentes,
ah como eu queria esganar alguns jovenzinhos idiotas. Talvez pensem que eu sou
mais coitado que eles, mas sabe-se lá, somos livres para julgarmos quem
quisermos e como quisermos.”
As mãos de Alberto acabaram de esfregar
o rosto, como se o lavasse com água, mas com o que naquele momento esfregara
seu rosto era mágoa e não água. E todo esse pensamento amargo não durou mais do
que o subir e descer de suas mãos por duas vezes. O turbilhão de idéias ainda
estaria por vir, ele sabe que seu travesseiro antialérgico, anti ácaro, anti
mofo só não é anti amargura, anti ressentimentos. Se bem que pelas últimas
noites tem sido um pouco diferente.
Ao deitar-se Alberto percebeu ainda, que
ele mesmo é sua própria assombração: “E ainda tem essa, moro sozinho numa casa
mal assombrada, mal assombrada por mim mesmo. E é bem verdade que me sinto como
um fantasma. Tem sido assim desde que Eleonora morreu, levou consigo o amor que
havia em mim, a gentileza que herdei de minha família, e o seu sorriso doce que
não se desfazia. Sei que ela não levou nada disso, eu é que joguei tudo dentro
de seu caixão antes de o fecharem para o cortejo. Fui um covarde, não tive
coragem de ver o sepultamento e isso me custou revolta e indignação de outros,
outros que não sabem o que sinto realmente e como seria insuportável viver com
a imagem de um caixão levando em seu interior tudo que de bom havia em meu
interior. Eleonora era a minha essência, minha vida, e essa é a razão pela qual
passei a pensar que virei um fantasma que assombra a casa onde Eleonora viveu e
não uma pessoa que mora onde viveu com Eleonora.”
E a sucessão de pensamentos derrotistas,
mórbidos e melancólicos cessou ao formar-se em sua mente a imagem de um lugar
com um curso de água límpida e corrente, de pouca profundidade e cercado de
pedras limosas, com um musgo de um verde muito mais intenso que a sua própria
esperança. Alberto chega até a ouvir o som da água, talvez essa a distração que
o impeça em ouvir a voz de sua mente. Dessa maneira consegue adormecer por
todas as noites. Vem sendo assim desde que iniciou as sessões de terapia, a tal
condição que lhe impuseram para que continuasse no emprego.
Alberto sempre foi um funcionário
responsável, sem muitos talentos ou habilidades, mas sempre sério e caprichoso.
Sempre começou e terminou com êxito uma tarefa. Mas a morte de Eleonora foi como
uma amputação de um membro. Tornara-se um deficiente. Nos dois últimos anos
precisou da assistência médica da qual nunca precisou a vida inteira, e com
muito sacrifício, amigos, colegas e médicos o convenceram a procurar um
terapeuta. “Mas isso é coisa de gente fresca, sem pulso para encarar a vida.”
Sempre foi esse o pensamento de Alberto,
mas quando da morte de Eleonora percebeu o quanto era fraco e cheio de
dificuldades de encarar a vida por si só. Talvez a amada, ainda imortal em seu
sentir, tivesse total influência na fonte de energia vital de Alberto, agora
enfraquecido por uma anemia chamada morte, a morte da ‘minha metade de fora’,
assim era como ele definia o que Eleonora representava para ele. Nessa sua
definição havia uma questão existencial e outra até poética, que pensava ele se
tivesse mais habilidade com as palavras dedicasse um breve conjunto de poemas a
Eleonora. Gostava de ler, Alberto adorava a leitura. Era seletivo nos assuntos,
mas limitava-se a textos não muito longos, ou livros até mais longos, mas com
capítulos curtos a serem lidos esparsamente. Gostava de alguns poetas que
remetiam ao romantismo alemão, da época dos compositores clássicos das
sinfonias suntuosas, dos temas ideais. Por certo acabou um dia seduzido pelo ‘lado
obscuro’ onde andaram Goethe e Allan Poe. Quando conheceu um poema de Poe que
falava de uma Lenore que havia partido, chorou de dor e nunca mais o leu.
Pensou que naquele dia havia sentido a dor de perder Eleonora, mas não fazia a
menor idéia do quão profundo o corte que arrancou a metade de fora poderia ser.
Doloroso e impiedoso, como o golpe do ceifador que veste negro.
Alberto continuava naquele momento as
práticas meditativas e de relaxamento que vinha aprendendo. Com a imagem
daquele local agradável e de sons suaves, não chegava a sentir seu corpo
tocando o tecido do lençol sobre o colchão e tampouco o edredom que o cobria.
Alguns fragmentos de pensamentos e ressentimentos do dia formavam certa névoa
por sobre o curso d’água, mas a brisa suave de sua respiração a dispersava
quase que prontamente. E nesse exercício mantinha-se calmo, tranquilamente
sentindo o pulsar de seus vasos sanguíneos. O bater de dentro do peito num
compasso constante e o ritmo que impunha ao entrar e sair do ar em seus pulmões
faziam-no sentir dono de seu corpo e quase que dono de sua mente. Nesse momento
era tomado por um alívio muito acima de um prazer imediato, intenso e
passageiro ou perturbador como sexo sem amor, uma forma de conforto não só do
corpo, mas do ser por completo. Sabia que era possível ir além, mas por
enquanto contentava-se nesse pequeno refúgio com água, pedras e pouco verde. O
mais importante era o silêncio dentro de sua mente, os barulhos exteriores já
não eram ouvidos há muito.
E para esse lugar Alberto ia todas as
noites antes de adormecer e nesse dia não foi diferente, adormecera.
O relógio que deixava na escrivaninha do
outro lado do quarto estava marcando exatamente quatro horas e trinta e sete
minutos da manhã, ainda faltava treze minutos para o despertar de Alberto. Um
estrondo do lado de fora. “Talvez um trovão”, pensou Alberto logo depois de
abrir os olhos devido ao susto. Manteve-se imóvel na cama e tornou a fechar os
olhos, mas sabia que não iria adormecer novamente. De súbito decidiu fazer uma
prece antes de levantar- se, mas não para um deus ou qualquer outra entidade
que se conheça, uma prece apenas, sem destino diferente de seu próprio bem
estar.
Nunca crera em doutrinas ou entidades
religiosas, num deus talvez, mas não dedicava sua atenção a esses assuntos ou
pensamentos. De alguma forma, essa sua nova prática diária trazia certo
conforto a ele que inevitavelmente o levou a pensar que vinha de um plano
realmente espiritual. Sua prece parecia se dirigir a uma imagem dele mesmo se
orientando em manter a tranqüilidade da mente e os maus pensamentos habituais
distantes.
Sentiu-se confortável naquele instante,
mas o toque do despertador ruiu toda a tranqüilidade daquele momento e acabou
por provocar um desconforto que saiu debaixo do edredom junto a ele e
arrastou-se grudado em uma das pernas até meter-se de baixo do chuveiro. Um
banho bem breve, apenas para que despertasse.
Alberto não assinava nenhum tipo de
impresso com notícias que fosse entregue em seu domicílio, gostava de passar
logo cedo, por umas duas ou três vezes na semana, na banca do Ishiro, um
japonês que fala um português engraçado, e que diverte Alberto ouvi-lo falando,
Ishiro tinha sabedoria e pensamento orientais, o que sempre tornava certo uns
quinze minutos de conversa saudável até chegar o horário da condução.
Alberto preferia aproveitar o tempo de
viagem para fazer a leitura das ‘notícias inúteis’ - essa era a definição que
Alberto tinha sobre as notícias dos jornais contemporâneos – durante o trajeto
e não desperdiçar tempo em casa com isso. O que tornava curto o tempo entre
acordar e sair de casa.
E ao tomar sua condução para o trabalho
sabia que o dia o transformaria no fantasma que se deitou ontem, o fantasma de
Alberto que assombra a casa onde viveu Eleonora.
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